O Senado Federal promoveu na última segunda-feira (18/4) audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) para discutir as mudanças delineadas pela Portaria nº 596/2022, do Ministério da Saúde (MS) que corta recursos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). A reunião foi uma iniciativa do presidente da CDH, senador Humberto Costa (PT-PE).
A portaria, de 22 de março, revoga o Programa de Desinstitucionalização para reinserção social de pessoas com transtorno mental internadas há mais de um ano em hospitais psiquiátricos, acabando também com o mecanismo de financiamento do programa. De modo complementar, o Ministério da Cidadania lançou um edital para financiamento de hospitais públicos psiquiátricos –que o programa de desinstitucionalização pretendia restringir ao mínimo necessário.
O senador Humberto Costa, autor do requerimento dessa audiência pública, abriu a sessão anunciando que apresentará requerimento de acesso às gravações de reuniões do Superior Tribunal Militar (STM), realizadas na ditadura. Essas gravações mostraram que os membros do STM tinham conhecimento da prática frequente de torturas contra presos políticos. Também estiveram presentes a deputada Erika Kokay (PT-DF), os senadores Zenaide Maia (PROS-RN) e Flavio Arns (Podemos-PR), Fernanda Rodrigues da Guia (Conselho Nacional da Saúde), Thales Treiger (defensor público federal), Leonardo Pinho (presidente da Abrasme – Associação Brasileira de Saúde Mental), Haroldo Caetano (promotor de justiça do estado de Goiás) e Dayana Rosa, pesquisadora de políticas públicas do IEPS.
Treiger sublinhou a “tentativa de retrocesso” da portaria, ao promover a “ambulatorização” da atenção psiquiátrica, “além de facilitar a violação dos direitos humanos”. Disse que, inclusive, já enviou ofício ao Ministério da Saúde (MS) para averiguar a questão orçamentária, se esta não estaria optando por uma lógica errada e economicamente equivocada.
Pinho entregou a Nota Técnica produzida pela Abrasme e pela Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, que demonstra como as últimas medidas do governo federal são ilegais e vão contra os tratados internacionais e todas as diretrizes técnicas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Caetano lembrou do esforço feito no seu estado para conseguir abolir os manicômios judiciários, e salientou que “um país que conseguiu isso não pode conviver com propostas de retrocesso na saúde mental”. Relembrou também os compromissos assumidos pelo Brasil na erradicação da tortura, a partir do emblemático caso de Damião Ximenes, que morreu 3 dias após ser internado na Casa de Repouso Guararapes, resultando na condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A pesquisadora Dayana Rosa, do IEPS, atuando em parceria com o Instituto Cactus, fez uma apresentação detalhada, na qual apontou que as políticas públicas de saúde mental não têm sido baseadas em evidencias e que há insuficiência de instrumentos de gestão adequados. “Não encontramos na portaria e no edital evidências científicas suficientes que sustentem essas alterações”, afirmou. A pesquisadora do IEPS lembrou que a medida afeta mais de 6 mil pessoas que atualmente moram em Serviços Residenciais Terapêuticos, além das equipes de desinstitucionalização, que terão perda de vínculo empregatício ou remanejamento, e da sociedade como um todo, pelo fortalecimento do preconceito e do estigma.
Dayana Rosa elencou a cadeia de problemas que cercam o tema:
“A política de saúde mental do país piorou; sem evidências não há gestão, nem responsabilidade; a internação deve ser a última opção e, por fim, e não menos importante, a desinstitucionalização funciona”.
Ao finalizar, convergiu para 5 propostas apresentadas pelo IEPS:
- Apresentar Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) das políticas nacionais de Saúde Mental e sobre Álcool e Drogas
- Cancelar Edital de Chamamento Público nº 3/2022, do Ministério da Cidadania
- Sustar a Portaria nº 596, de 22 de março, do Ministério da Saúde
- Ofertar uma diversidade de serviços e estratégias para o cuidado, como as SRT, UA e hotéis solidários, fornecendo apoio habitacional
- Retomar imediatamente o PNASH/Psiquiatria e a publicação do “Saúde Mental em Dados
Políticas públicas de saúde mental precisam ser baseadas em evidências e proteger os direitos das pessoas com transtornos mentais e o trabalho dos profissionais de saúde mental
Dayana Rosa
Fernanda Rodrigues da Guia, do CNS, lembrou que as alterações não são desejáveis para a política nacional de saúde mental, e que o CNS vem desenvolvendo uma série de procedimentos clínicos, que vão além do atendimento individual. Ela vê ainda mais retrocessos. “Essa portaria faz um estrago, interrompe um trabalho de 3 décadas”.
Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), o Brasil “vinha construindo uma rede de atenção psicossocial, que dava conta dos ciclos traumáticos, e o que vemos agora é o desfinanciamento desses setores”. “E faltam dados, falta transparência, isso alimenta posturas de arbítrio e de retrocesso de direitos.”
A senadora Zenaide Maia (PROS-RN) apontou um “sucateamento dos serviços”. “Há um apagão de informações, que desmerece as instituições, tira os recursos e justifica uma terceirização na saúde mental”.
O senador Flavio Arns (Podemos – PR) sublinho que a área da saúde mental é uma das mais importantes para a sociedade, especialmente no período pós-pandemia. “Penso que nada deve ser interrompido, todo processo em andamento deve ser mantido e aprimorado”. “Essas pessoas que perderam seus vínculos têm que ser apoiadas na sua reinserção na sociedade”, afirmou, referindo-se ao processo de atenção psicossocial.
Ao finalizar, o senador Humberto Costa afirmou que “essa audiência de hoje não esgota o debate sobre essa questão, vamos aprofundá-lo”. “Essa busca pela volta de um modelo que não só já se mostrou ineficiente como teve como marca principal o desrespeito aos direitos humanos” disse.
O Poder Executivo, apesar de convidado para a audiência pública, não enviou representantes.
Baixe a íntegra da apresentação de Dayana Rosa (IEPS) na audiência pública aqui.
Assista à Audiência Pública abaixo:
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