Saúde Privada no Brasil: estudo inédito do IEPS e Umane analisa setor e suas relações com o SUS nas últimas décadas
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O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e a Umane lançam, nesta quinta-feira (10/10), a pesquisa Setor Privado e Relações Público-Privadas da Saúde no Brasil: Em Busca do Seguro Perdido, que analisa aspectos fundamentais da saúde privada no Brasil e suas relações com o setor público nas últimas décadas. As grandes mensagens da pesquisa indicam a necessidade de garantir proteção e mecanismos de seguro em saúde para a população brasileira, incluindo o fortalecimento das necessidades de financiamento do SUS, a necessidade de avançar na regulação do setor privado e das relações público-privadas, e a construção de uma governança adequada liderada pelo Estado brasileiro. A pesquisa completa pode ser acessado aqui e o sumário executivo aqui.

Reunindo nove estudos inéditos, que abordam, ao longo de mais de 450 páginas, temas como a expansão de clínicas populares, a chegada do investimento estrangeiro em hospitais, a concentração de mercado entre as operadoras, a situação das Santas Casas e dos hospitais filantrópicos, a prática dual dos profissionais de saúde entre os setores, entre outros temas fundamentais que refletem o cenário de crise e transformação do sistema de saúde brasileiro nas últimas décadas.

A pesquisa foi construída ao longo de um ano de trabalho e contou com o diálogo e colaboração de pesquisadores e autoridades da Saúde. “O diálogo foi um aspecto muito importante para construção dessa pesquisa, que contou com a colaboração de pesquisadores e autoridades públicas em oficinas de discussão, entrevistas e análise de dezenas de bases de dados. A proposta desse projeto é justamente essa: dar um passo importante para construção de diálogo e de caminhos para enfrentar os problemas que afetam o sistema de saúde e, consequentemente, a garantia à saúde de toda população brasileira”, afirma Rudi Rocha, diretor de pesquisa do IEPS e coordenador do projeto.

A necessidade do seguro em saúde

A pesquisa aponta que é fundamental que haja uma expansão dos mecanismos de seguro de saúde no país. O que significa que o Estado brasileiro deve fortalecer políticas e estratégias para garantir que qualquer cidadã e cidadão possa ter acesso a cuidados de saúde, independente da gravidade do problema, da ocasião e de suas capacidades financeiras. 

Atualmente, o Brasil gasta cerca de 4% do PIB para financiar o SUS, enquanto 6% vão para a saúde privada. Uma dinâmica que faz do país um ponto fora da curva no quesito composição dos gastos em saúde e indica um cenário preocupante, considerando que a maioria da população brasileira depende da saúde pública.

“Aproximadamente 75% da população brasileira dependem exclusivamente do SUS e, entre o público e o privado – num sistema de saúde que se propõe a ser único – o acesso a recursos, insumos, prestação de serviços e dinâmicas é bastante desigual. Este estudo tem como foco as características e tendências da saúde privada no Brasil, de forma abrangente e com uma atenção especial à sua essencial relação com o SUS. As necessidades crescentes de financiamento da saúde pedirão um sistema mais organizado, menos fragmentado, com relações mais sustentáveis entre os agentes e governança sólida, e as recomendações contidas neste estudo permitirão um diálogo com a sociedade a este respeito”, pontua Thais Junqueira, superintendente geral da Umane. 

Nesse sentido, apesar do país ter uma cobertura universal e gratuita de saúde ofertada pelo SUS, seu subfinanciamento crônico dificulta a oferta dos serviços de saúde. Segundo a pesquisa, a necessidade de financiamento é crescente: estima-se que será necessário mais de 3,2 pontos percentuais do PIB até 2060, o que representará um esforço adicional de financiamento em torno de R$1 trilhão por ano, ou de R$350 bilhões, a valores atuais.

Além disso, embora existam margens para ganhos de eficiência e equidade do gasto público, os avanços nesse sentido se mostram insuficientes. Dessa forma, torna-se cada vez mais importante priorizar e aumentar o financiamento público da saúde. 

Se, por um lado, essa recomendação é bastante consolidada ou discutida no debate público, por outro, existe uma necessidade crescente de avançar no debate sobre a incipiente contribuição dos seguros e planos privados de saúde na oferta de serviços genuinamente de seguros. De acordo com a pesquisa, esse segmento parece estar organizado e regulado de modo a reforçar respostas de mercado em direção a menos seguro e a mais fragmentação do financiamento. 

Uma das mensagens do estudo é que esse movimento deveria ser revertido por meio de uma regulação que induza a consolidação de serviços de seguro baseados em grandes carteiras de beneficiários, equilibradas atuarialmente, em contraposição à entrada ou permanência no mercado de produtos de cobertura limitada, tanto em termos de serviços como em termos de proteção contra reajustes abusivos ou rescisão unilateral.

A importância de uma precisão regulatória para o setor de saúde

Avançar na regulação do setor de saúde é uma etapa fundamental para garantir a qualidade dos serviços e induzir mecanismos de seguro em saúde para a população. O estudo destaca que as inovações de mercado do setor precisam ser acompanhadas por um arcabouço regulatório bem financiado, moderno e capaz de reagir a novos desafios com a precisão necessária. 

Nesse contexto, a relação entre prestadores e operadoras é um dos pontos mais nevrálgicos. Um exemplo é a necessidade de regulação que garanta um  monitoramento da qualidade das práticas e dos serviços prestados, principalmente no caso das operadoras verticalizadas,  que oferecem uma rede própria de serviços, e das clínicas populares, que combinam a oferta de serviços médicos prescritivos, exames diagnósticos e procedimentos. Casos em que pode existir um grande potencial para conflitos de interesses, que devem ser coibidos pelo Estado. 

Além disso, a restrição de produtos de cobertura limitada a serviços de baixa complexidade e a existência de planos baseados em pequenos contratos, com reajustes baseados em sinistros recentes (ao invés de considerar questões como o perfil etário e epidemiológico de cada região) e sujeitos à rescisão unilateral, também precisam ser alvo de regulação, já que essas modalidades não podem ser consideradas seguros de saúde propriamente ditos. Nesse sentido, é fundamental garantir uma carteira de beneficiários mais ampla e equilibrada significa formar pools de contribuintes com a proporção necessária para garantir um subsídio cruzado entre aqueles que necessitam mais e menos de serviços de saúde

Outra mensagem importante sobre questões regulatórias é a necessidade de regras claras e unificadas que possam garantir previsibilidade ao processo de inovação e incorporação de tecnologia e de mudanças na cobertura de procedimentos. Segundo o estudo, sem uma regulação adequada, a incorporação de novas tecnologias pode elevar ainda mais os custos do sistema, sem necessariamente melhorar a qualidade dos cuidados oferecidos. 

Estado deve conduzir diálogo para garantir governança ampla 

O estudo destaca a necessidade de institucionalidade ou governança mais ampla do sistema de saúde brasileiro, capaz de coordenar as ações ou reformas que se mostram necessárias. Um papel que, orientado pela experiência internacional, cabe ao Estado, aos governos e às suas agências de regulação e que demanda transparência, diálogo contínuo entre setor público e privado e compromisso com uma regulação eficaz e integrada. 

“Não podemos permitir que o mercado privado de saúde continue a operar de maneira fragmentada e sem supervisão adequada, especialmente nas áreas onde os sistemas público e privado interagem diretamente, como na contratação de serviços, uso de infraestrutura e compartilhamento de recursos humanos”, enfatiza o diretor de pesquisa do IEPS, que destaca também que a sustentabilidade do sistema de saúde depende de ações coordenadas e de uma governança que seja capaz de garantir tanto a eficiência quanto a equidade no acesso aos cuidados.

“A estimativa é que os subsídios de saúde declaradas no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) ou deduzidas do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) somem R$ 40 bilhões em 2024, dos quais quase R$ 27 bilhões referentes apenas ao IRPF, refletindo os incentivos à sobreutilização de serviços e outras ineficiências do setor, tais como os altos custos de transação”, aponta Evelyn Santos, gerente de parcerias e novos projetos da Umane.

“O debate está posto: como sociedade, estamos prontos para enfrentar esses desafios e garantir um sistema de saúde que proteja todos os brasileiros, independentemente do modelo de financiamento, sem deixar ninguém para trás?”, questiona Rocha.