Inconsistências conceituais e poucos avanços práticos na consolidação de uma plataforma única de dados de saúde. Essas são algumas das conclusões da Nota Técnica n. 32 – Considerações sobre a regulamentação de uma Plataforma Digital Única no âmbito do Sistema Único de Saúde, elaborada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), que faz uma análise comparativa entre o último texto substitutivo apresentado ao Projeto de Lei n. 5.875/2013 e o PL n. 3.814/2020. A pesquisa faz parte das produções do Programa TechSUS, uma iniciativa do IEPS para fortalecer a saúde digital no Brasil.
Maria Letícia Machado, gerente do programa TechSUS e uma das autoras do estudo, destaca a importância de iniciativas no campo legislativo, mas enfatiza a necessidade de amadurecimento do debate. “Propostas legislativas têm o papel de apoiar a institucionalização da transformação digital de maneira perene, mas não podemos ignorar a necessidade de melhorias nos projetos e discussões que estão em curso. É somente a partir de um debate qualificado que poderemos garantir uma governança de dados em saúde no Brasil que leve em conta a magnitude e complexidade das trocas de informações no SUS”, enfatizou a pesquisadora.
10 anos de tramitação e 24 apensados ao PL 5.875/13
O PL 5.875/2013, de autoria do Senador Renan Calheiros (PMDB/AL), foi originalmente apresentado para regulamentar a disponibilização do Cartão Nacional de Saúde (CNS) aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao longo de 10 anos de tramitação, foram apensados 24 projetos de lei sobre assuntos correlatos ao teor da matéria, incluindo o PL n. 3.814/2020, de autoria do Senador Confúcio Moura (MDB/RO), que propõe a manutenção de uma plataforma digital única com informações de saúde dos pacientes.
Em dezembro de 2022, uma análise do PL 5.875/2013 e de seus apensados resultou na apresentação de um texto substitutivo, que além de abordar os mecanismos para identificação unívoca dos usuários do SUS, propõe a regulamentação do processo de troca e compartilhamento de dados e informações em saúde. Embora o PL seja um agregador de projetos que versam sobre a digitalização da saúde brasileira, existem aspectos práticos e teóricos em sua formulação que demandam melhorias. Abaixo listamos três dos seis aspectos destacados na nota técnica.
Inconsistência sobre o objeto da regulação
Um dos aspectos destacados pela pesquisa é a confusão conceitual entre “prontuário eletrônico” e “plataforma digital” do substitutivo. Segundo o estudo, a instituição de uma plataforma digital implica no estabelecimento de diretrizes para a gestão e manutenção de uma ferramenta que integra soluções e serviços de saúde em um ambiente virtual comum; enquanto o prontuário eletrônico envolve normas e regulação de sistemas destinados ao registro e armazenamento de informações médicas e de saúde de um paciente.
A pesquisa, inclusive, não recomenda a criação de um prontuário eletrônico unificado, já que haveria uma restrição do uso de outros sistemas de informação disponíveis no mercado e adotados pelos diferentes estabelecimentos de saúde. Além do alto custo de adaptação, a medida iria de encontro com os atuais esforços do Ministério da Saúde no desenvolvimento de soluções de interoperabilidade, que permite a coexistência e a utilização de diversos sistemas de prontuários eletrônicos de diferentes fornecedores.
Identificação unívoca e qualificação do papel do usuário como detentor dos dados
Outro aspecto que demanda melhorias no substitutivo ao PL 5.875/2013 está relacionado às informações do usuário do sistema de saúde. Diferente da versão original do PL, o texto substitutivo prevê a utilização do Cadastro de Pessoa Física (CPF) como suficiente para identificação do cidadão. Segundo a Nota Técnica n. 31, a utilização exclusiva do CPF requer reflexões sobre potenciais riscos de violação às regras de proteção de dados e sobre a criação de um fluxo intersetorial para os casos de impossibilidade de uso do CPF.
Segundo a pesquisa, o CPF deve ser considerado uma forma de identificação do paciente preferencial e não exclusiva, seguindo o que já acontece na prática, onde o Cartão Nacional de Saúde é adotado como número de identificação secundário aos usuários que não possuem inscrição no CPF. A alternativa pode evitar barreiras de acesso pela não portabilidade do documento, o que ajuda a garantir o acesso à saúde. Além disso, o estudo do IEPS encoraja que uma nova redação para o PL preveja de forma explícita funcionalidades para que o usuário possa gerir seus próprios dados e acessos; além de informações instrutivas sobre como navegar por essas funcionalidades.
Troca de informações entre sistemas e adesão por diferentes provedores de saúde
Apesar de previsto, o compartilhamento de informação entre sistemas de saúde também carece de avanços importantes. Segundo a Nota Técnica, o PL não apresenta soluções para questões específicas sobre a governança de dados como a definição do conjunto mínimo de dados a ser compartilhado, as finalidades do compartilhamento e mecanismos de incentivo à adesão à plataforma pelos diferentes provedores de saúde.
Por um lado, essa ausência é justificada pela limitação do instrumento normativo, uma vez que esse tipo de regulamentação é mais cabível para uma política ou portaria que estruture a governança de dados e informações, bem como parâmetros de interoperabilidade.
Todavia, o estudo defende que haja menção explícita à necessidade de elaboração de normas infralegais com esse foco; o que poderia estimular o Ministério da Saúde na definição de políticas e diretrizes voltadas para o tema e contribuir para a consolidação da Rede Nacional de Dados em Saúde, já em vigor.
Acesse a Nota Técnica n. 32 – Considerações sobre a regulamentação de uma Plataforma Digital Única no âmbito do Sistema Único de Saúde aqui.